Retratar na linguagem dos quadrinhos a história da devoção a Nossa Senhora de Nazaré, iniciada em Portugal e consolidada no Pará há mais de dois séculos, foi o primeiro grande desafio da carreira do cartunista paraense Luiz Pinto, que assina seus trabalhos como LuizPê. Após anos de pesquisa e quase 10 meses de trabalho intenso, a primeira edição da revista foi publicada em preto e branco em 1993, ano do Círio 200, encartada em uma revista especial da Agência Ver Editora sobre a festividade.
Em 25 anos de existência, a revista já chegou à quinta edição, com apoio cultural do Governo do Pará (por meio da extinta Companhia Paraense de Turismo - Paratur) e, em 2017, também da Diretoria da Festa de Nazaré.
Nascido em Santarém, no oeste do Pará, Luiz Antonio de Faria Pinto, 64 anos, tem uma longa trajetória no jornalismo gráfico, como diagramador, ilustrador, chargista, caricaturista e cartunista. Trabalhou em jornais em São Paulo (SP), Salvador (BA) e em Belém (PA). Há vários anos se dedica ao trabalho em quadrinhos, às caricaturas e ao Jornal Pessoal do jornalista Lúcio Flávio Pinto.
Na entrevista abaixo, ele detalha o processo de criação da revista em quadrinhos do Círio de Nazaré, a importância do quadrinho histórico para a preservação da cultura e sua visão sobre a grande festa religiosa realizada na capital paraense no segundo domingo de outubro. “É para ler se deleitando com os desenhos e guardar como um marco nas HQs paraenses”, afirma o historiador Sebastião Godinho.
Por que levar a história do Círio para a linguagem dos quadrinhos?
Luiz Pinto: As histórias em quadrinhos estabelecem uma relação direta e imediata com o leitor devido à riqueza de imagens e dos textos mais enxutos e dinâmicos. Isso facilita a leitura e torna o conteúdo mais acessível. Além disso, as HQs têm milhões de leitores em todos os continentes. Elas ganharam o mundo com as histórias de aventuras e super-heróis, principalmente nos EUA, mas em vários países da Europa, a produção de quadrinho histórico é muito expressiva. No Brasil, várias editoras já publicaram HQs sobre fatos históricos, como a Inconfidência Mineira, ou “quadrinizaram” clássicos da literatura, como Dom Casmurro, de Machado de Assis. Tenho, inclusive, uma edição de “Os Lusíadas”, de Camões, um trabalho do artista gráfico Lailson de Holanda Cavalcanti. A linguagem do quadrinho é fantástica. Quando decidi fazer a HQ do Círio, meu principal objetivo foi mostrar esse universo que cerca o Círio de Nazaré, que vai muito além dos 15 dias de festividade ou da grande procissão no segundo domingo de outubro. Há religião, crença, milagres, mas também há política e muitas curiosidades, que não são percebidas na efervescência da festa. Além de mostrar a evolução da cidade de Belém na sua iconografia. Quero que a revista chegue a todas as bibliotecas do Pará e de outros estados, contribuindo para levar essa história tão singular o mais longe possível, chegando especialmente até as crianças e os adolescentes, que têm nos quadrinhos, mesmo nesta era digital, uma porta aberta ao conhecimento.
Como se deu o processo de criação da revista?
Luiz Pinto: Meu trabalho de quadrinhista está mais voltado ao quadrinho feito na Europa. Antes de escolher o tema, estudei bastante, pesquisando vários autores, para poder contar a história de várias formas, até com personagens fictícios, como aconteceu com esta HQ do Círio, mas sem alterar os fatos. Para fazer a revista sobre o Círio comecei pela pesquisa histórica sobre o Pará. Foi um trabalho artesanal, pois na época (1992) eu ainda desenhava em prancheta e a lápis, para depois finalizar com nanquim. Tudo foi feito dessa forma, até o letramento. É só pegar a primeira edição, ainda em preto e branco, e comparar com as demais. A primeira edição totalmente colorida, que me ocupou por mais 10 meses, eu já fiz no computador, mas ainda com usando o mouse. Há alguns anos conto com a facilidade do pen-tablet e de programas que facilitam, por exemplo, a pesquisa de cores.
Foram feitas mudanças nas edições seguintes?
Luiz Pinto: A partir da terceira edição aproveitei para fazer ajustes em algumas páginas, pois na primeira havia quadros com excesso de texto, devido a urgência em finalizar o trabalho dentro do prazo. Redesenhei algumas páginas, distribuindo melhor os textos. Nas páginas finais coloquei as mudanças realizadas, para que o leitor fizesse a comparação. Essas alterações foram necessárias para recuperar a agilidade e a objetividade da linguagem dos quadrinhos, recobrando essa característica fundamental na leitura de HQ.
Capas das edições anteriores
Como é possível definir esse trabalho?
Luiz Pinto: A revista do Círio é o que chamamos de “quadrinho de autor”, pois sou responsável pela pesquisa, pelo roteiro e demais etapas do processo de criação. Enquanto uma revista de super-herói das grandes editoras mobiliza uma grande equipe – às vezes um profissional para cada etapa -, a HQ do Círio é um trabalho individual. Foi difícil, pois na época não tinha nenhum patrocínio, mas é um trabalho que me trouxe muita satisfação profissional.
O que chama tua atenção na história do Círio?
Luiz Pinto: A história do Círio é fascinante. A devoção começa em 1182, em Portugal, com o milagre envolvendo o nobre português D. Fuas Roupinho. A imagem de Nossa Senhora reverenciada em Portugal seria uma cópia de Maria, esculpida na Galileia, teria passado pelas mãos de São Jerônimo e Santo Agostinho, e escapado a várias perseguições durante séculos. Além dessa viagem pela Europa, tem as histórias que cercam a imagem em Belém, desde o achado pelo Plácido até o primeiro Círio, em 1793, passando por questões políticas e polêmicas provocadas pelas várias mudanças ocorridas na procissão com o passar dos anos, incluindo o crescimento da festividade, que hoje conta com mais de 10 romarias.
A história do Círio extrapola o aspecto religioso?
Luiz Pinto: Com certeza! A revista não é direcionada apenas à população católica e a pessoas de outras religiões que se identificam com o Círio e a devoção a Maria. É uma revista feita para levar a riqueza dessa história a todas as camadas da população. O Círio há muito tempo é um dos mais fortes ícones da cultura paraense, além de ter se tornado um grande evento turístico, que atrai para Belém milhares de pessoas de outros estados e países. Ele reúne vários aspectos, como a receptividade do povo, a criatividade, a alegria do paraense, a confraternização em torno da mesa farta, a solidariedade no acolhimento aos romeiros e, obviamente, as inúmeras manifestações de fé. Seja religioso, ou não, é impossível não se emocionar, não se deixar envolver por essa atmosfera que toma conta de Belém nessa época do ano.
Em vários países, as histórias em quadrinhos, já denominadas de nona arte, ganham nomes e estilos diversos. Publicadas em livros, revistas, álbuns ou jornais, elas recebem em Portugal o nome de Banda Desenhada, e na França, Bande Dessinée. Nos Estados Unidos, grande centro dos quadrinhos de aventura, são os Comics, e no Japão, os mundialmente famosos Mangás. Para os italianos são Fumetti (alusão aos balões dos diálogos, que parecem fumaça saindo das bocas dos personagens), e para os espanhóis, os Tebeos. Na Argentina, as HQs são Historietas; em Cuba, Muñequitos; na Coreia do Sul, Manhwas, e na China, Manhuas.
Independentemente da forma como são conhecidas, as HQs estão presentes na história desde a antiguidade. Pinturas rupestres, os hieróglifos egípcios e as tapeçarias da Idade Média são considerados pelos estudiosos como a origem desse gênero de arte, que une literatura e imagens desenhadas ou pintadas.
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